O governo chinês tem-se mostrado relutante em disponibilizar as tecnologias de reprodução assistida às mulheres solteiras, mesmo quando as taxas de fertilidade do país atingem um nível recorde negativo.
No início deste ano, pouco depois de a China ter levantado as medidas rigorosas de “covid zero” que a mantiveram isolada durante três anos de pandemia, diversas chinesas solteiras atravessaram a fronteira para Hong Kong para fazer algo que sentiam que não podiam esperar mais: congelar seus óvulos.
Mas qual o motivo dessa debandada? O país não dispõe de tecnologia suficiente para fazer o congelamento de óvulos? Longe disso! O problema é outro!
O congelamento de óvulos tornou-se um tema crescente de discussão na China, onde as autoridades alarmadas com o primeiro declínio populacional do país em seis décadas, estão tentando aumentar a taxa de natalidade, enquanto os jovens, por outro lado, estão adiando cada vez mais o casamento e a ideia de ter filhos.
“O motivo da discussão é que as mulheres solteiras são legalmente proibidas de se submeterem ao tratamento de congelamento de óvulos, o que leva muitas mulheres a fazê-lo noutros locais, a um custo muito maior, numa tentativa de preservar a fertilidade futura”, explica a especialista em Reprodução Humana, Ana Elisabete Dutra, diretora da Ciclos Medicina Reprodutiva.
Relutância do governo
A lei atual na China, onde ter filhos fora do casamento é desaprovado, proíbe as mulheres solteiras de utilizarem quaisquer tecnologias de reprodução assistida, incluindo o congelamento de óvulos. Os homens podem congelar seus espermatozoides, independentemente do estado civil.
A lei foi contestada, em 2019, por Teresa Xu, uma mulher solteira que processou um hospital de Pequim que a rejeitou como candidata ao congelamento de óvulos. O seu caso foi rejeitado no ano passado por um tribunal de Pequim, que afirmou que o hospital não violava seus direitos.
Xu fez um apelo final em maio deste ano, esperando que o caso se tornasse um marco e expandisse os direitos reprodutivos para mulheres solteiras como ela. Ela ainda está esperando por um veredito.
No entanto, o governo chinês tem sido irredutível e nega-se a oferecer o congelamento de óvulos para mulheres solteiras.
Em 2021, a Comissão Nacional de Saúde Chinesa, respondendo a um questionamento para disponibilizar as tecnologias de reprodução assistida às mulheres solteiras, respondeu que o congelamento de óvulos era mais invasivo do que os procedimentos aos quais os homens eram submetidos e levantavam questões éticas, além de poderem ter um impacto social adverso.
“Autorizar o congelamento de óvulos para mulheres solteiras pode atrasar ainda mais a idade reprodutiva das mulheres, o que não contribui para proteger a saúde das mulheres e dos bebês”, alega um documento oficial da Comissão Nacional de Saúde Chinesa.
Mesmo num cenário adverso, a questão continua a ser levantada no país. Membros do principal órgão consultivo político da China propuseram novamente, neste ano, que as mulheres solteiras fossem gradualmente autorizadas a congelar os seus óvulos para preservar a sua fertilidade, embora tivessem de ser casadas para os utilizar.
Entre as preocupações de que a população em idade ativa esteja diminuindo muito rapidamente, a China tomou outras medidas destinadas a aumentar as taxas de natalidade. Em 2016, alterou a sua “política do filho único”, que durou décadas, para permitir que todos os casais tivessem um segundo filho e, em 2021, o limite foi aumentado para três.
Mas a mudança política não aumentou a taxa de natalidade como esperado. Os jovens citam o elevado custo de criar os filhos, o estresse no trabalho e a relutância em trazer bebês ao mundo numa sociedade altamente competitiva como as razões para a resistência em casar e constituir família.
A China teve uma baixa em sua taxa de fertilidade recorde no ano passado. E a tendência é de essa taxa acompanhe os índices globais e continue a cair…
Direito de escolha da mulher
O congelamento de óvulos percorreu um longo caminho desde a década de 1980. O que começou como um procedimento para mulheres submetidas a tratamentos médicos que comprometem a fertilidade – tratamento de câncer, por exemplo – agora teve sua função ressignificada e está sendo empregado como uma espécie de “apólice de seguro” de gravidez da mulher moderna.
“Biologicamente a mulher deveria engravidar até os 30-35 anos. À medida em que as mulheres envelhecem, tanto o número quanto a qualidade de seus óvulos diminuem, e com isso suas chances de engravidar, e esse impacto negativo na fertilidade se observa principalmente a partir dos 35 anos”, observa a diretora da Ciclos Medicina Reprodutiva.
No entanto, cada vez mais, a mulher tem postergado a maternidade. Muitas mulheres entre 30-40 anos têm deixado a maternidade para depois… Depois de terminar os estudos, depois de ascender na carreira, depois de encontrar o parceiro ideal, depois de obter independência financeira, depois de curtir sua liberdade, depois de aproveitar a vida a dois…
“Mas os óvulos não esperam. Eles vão se esgotando e perdendo qualidade. E nesse contexto, nada mais oportuno do que um tratamento que permita guardar os óvulos de qualidade de agora para o uso no futuro”, defende a médica.
O congelamento de óvulos é o tratamento de preservação da fertilidade feito por mulheres que desejam postergar a maternidade, mas sem fechar as portas para formar uma família no futuro.
“O controle da natalidade deu às mulheres a escolha de ter ou não um bebê. O congelamento de óvulos pode dar a elas a escolha de quando ter um. Esta deve ser uma decisão que deve ser tomada pela mulher e não pelo governo de um país”, afirma Ana Elisabete Dutra.